São Luiz do Anauá, cidade de 7.315 habitantes no sul de Roraima, decretou calamidade financeira após declarar que não possui mais recursos para pagar salários, manter serviços públicos nem honrar contratos.

O decreto, assinado no início de julho, surpreendeu pelo contraste com os números que chamaram a atenção do país: o município foi o que mais recebeu emendas parlamentares per capita no Brasil nos últimos cinco anos.

Entre janeiro de 2020 e maio de 2025, R$ 126 milhões foram enviados por meio de emendas de deputados e senadores — o que representa R$ 17,4 mil por habitante. Para efeito de comparação, a média nacional no mesmo período foi de R$ 525 por pessoa. São Luiz do Anauá recebeu, portanto, 33 vezes mais que a média brasileira.

A maior parte desse montante — R$ 92 milhões — chegou por meio das chamadas emendas Pix, modalidade adotada nos últimos anos que permite a transferência direta de verbas federais para os cofres municipais, sem a necessidade de projeto técnico ou prestação de contas formal até mudanças recentes na legislação.

Segundo Juliana Sakai, diretora executiva da organização Transparência Brasil, essa modalidade oferece alto risco de desvios.

“Esses recursos entram direto no caixa do município. Até recentemente, não exigiam plano de trabalho nem contrapartidas. Com menos controle, o risco de o dinheiro sumir por corrupção ou ineficiência aumenta consideravelmente.”

A nova gestão da cidade, liderada pelo prefeito Elias da Silva (PP), conhecido como Chicão, afirma ter herdado uma prefeitura sem recursos, com obras inacabadas, pagamentos antecipados e dívidas não registradas. Chicão aponta diretamente o ex-prefeito James Batista (Solidariedade) como responsável pelo colapso financeiro do município.

“Recebi a prefeitura zerada. Não tinha um centavo. Há obras pagas que nunca foram feitas. O portal da cidade é só a fachada: não tem pavimentação, não tem ponte, não tem acesso. Temos que renegociar tudo para impedir o colapso total da máquina pública”, afirmou o prefeito em entrevista.

Desvios, dívidas e obras fantasmas

A atual gestão identificou ao menos quatro obras com indícios de desvios e pagamentos sem execução, cujos valores somam R$ 12,6 milhões:

  • Parque da Vaquejada: R$ 6,6 milhões pagos, obra inexistente;
  • Praça dos Buritis: R$ 3 milhões, apenas a base de concreto foi feita;
  • Portal da cidade: R$ 1,8 milhão, estrutura de 25 metros de altura sem acesso viário;
  • Casas populares: R$ 1,2 milhão pagos sem entrega de nenhuma unidade.

Além disso, a prefeitura afirma que R$ 680 mil foram descontados dos salários de servidores públicos como parte de empréstimos consignados, mas não foram repassados aos bancos, deixando dezenas de funcionários inadimplentes involuntários.

Todas essas denúncias foram formalmente encaminhadas à Controladoria-Geral da União (CGU), ao Tribunal de Contas da União (TCU), à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal.

Crise com DNA político

Apesar de hoje se apresentar como oposição ao ex-prefeito, Chicão foi vice-prefeito e secretário de Saúde nas duas gestões anteriores de James Batista, entre 2017 e 2023. Questionado sobre sua responsabilidade nos episódios de desvio, Chicão afirma que “não tinha conhecimento” dos problemas e que rompeu politicamente com James ao assumir a prefeitura em 2024, quando diz ter se deparado com a verdadeira dimensão da crise.

“Fui deixado com as dívidas, com as obras paradas e com os servidores sem receber. Rompi porque me recuso a compactuar com o que encontrei”, declarou.

O ex-prefeito James Batista não respondeu aos pedidos de esclarecimento enviados pela imprensa por meio de seu advogado.

Distorções

O caso de São Luiz do Anauá também evidencia as distorções na distribuição de recursos públicos no Brasil. Roraima é o estado menos populoso do país, com 636 mil habitantes e apenas 15 municípios, mas conta com o mesmo número de parlamentares federais que estados muito maiores, como o Amazonas.

Na prática, isso significa que os 8 deputados federais e 3 senadores de Roraima têm à disposição cerca de R$ 500 milhões por ano em emendas individuais, além das emendas de bancada e comissão, que podem elevar esse valor para acima de R$ 1 bilhão. Com poucos municípios para dividir os recursos, o repasse por cidade torna-se desproporcional.

Enquanto um senador da Bahia precisa dividir R$ 69 milhões entre 417 municípios, um senador de Roraima pode aplicar o mesmo valor em apenas 15.

Essa lógica explica por que, mesmo em estado de calamidade e com investigações em curso, São Luiz do Anauá continua sendo destino de milhões em emendas. Só em 2025, deputados e senadores já apareceram em ao menos dez vídeos com o atual prefeito Chicão para anunciar novas entregas de ambulâncias, tratores e caminhonetes.

Com informações de Tiago Mali/UOL